Monday, February 27, 2006

Uma questão de ordem

- ... e morreu o avô, e morreu o pai, e morreu o filho.
- Mas que história tão triste!
- Não, é que morreram por esta ordem.

(Se alguém souber em que filme ouvi esta história, peço o favor de me dizer!)

Friday, February 24, 2006

S. Torpes II

Vencidas as ervas do quintal, partimos para a praia com as miúdas, eu e a minha prima.
Sopra o vento, um clássico nesta costa alentejana, durante a tarde (dizia-o o "chefe" Canhão, já falecido, único colega que conheci que sabia de meteorologia). Paramos no restaurante Mar de Prata, onde dantes acabava a praia ao nosso alcance. O restaurante está fechado e há muito que o nome não é aquele. Agora, é aqui que em rigor começa a praia, porque, até ele, a belíssima praia de outrora foi destruída, "limpa" de suas rochas e invadida por canos e blocos artificiais. É suja. O mar é mais calmo do que dantes, junto aos pontões artificiais. A água é mais quente. À beira do restaurante há uma escada de acesso à praia. Parece-me que é a mesma que já havia por altura dos meus 14 ou 13 anos. Há também uma ribeira que vem desaguar na praia. A água que corre nela parece mais limpa do que outrora.
As miúdas correm pela praia, descalças. Molham os pés e gritam, do frio. Atravessam o riacho na sua foz, uma corrente tão fraca que isso não é, nem um pouco, perigoso. Espalham-se pelo areal aves que não costumamos ver. Uma toutinegra, diz a minha prima. Uma bekassina, penso eu, noutra língua, a minha língua inusitada. Em todo o caso uma limícola qualquer, a ave, é o que tem lógica. Tem uma poupinha, move-se ligeira, junto aos calhaus redondos tão típicos de S. Torpes (assim me disse há tempos uma geóloga), que se estendem em abundância a montante da foz do riacho, junto a uma ponte, para o lado das dunas. Eu e a minha prima descemos à praia e abrigamo-nos junto às rochas. Não sei do que falamos. Dói-me a cabeça e o sol não queima, mas fere o olhar, isola-me do mundo em vez de iluminar-me. Cega-me. De olhos semicerrados, protejo-me da areia trazida a reboque pelo vento e do excesso de luz. Embrulho-me na única toalha de banho que trouxemos. Faz frio. Excepto, é claro, para as miúdas, que, do outro lado do riacho, saltitam na planura de areia molhada que a maré vazia lhes oferece. Do lado de cá, alheias, o pensamento a vaguear entre passado e futuro, não percebemos exactamente o que fazem. Mas é óbvio que se divertem. Não desistem, apesar do vento e do frio. Quando se dão por satisfeitas, atravessam na nossa direcção, chamam-nos para vermos "desenhos lindos". Contrariadas, fazemo-nos ao caminho. Atravessamos o riacho quase sob a ponte, pelas pedras, onde se passa a seco. Os desenhos são corações e faixas em forma de cartazes, com nomes inscritos, os nomes dos rapazes de quem as nossas meninas gostam: amo-te Miguel, amo-te Pedro. A minha prima não se contém: desenha um enorme coração e dentro: amo-te Zé. Não posso ficar para trás. Risco no chão um coração muito assimétrico e uso a minha língua inusitada. Escrevo dentro dele, em desalinho e tendo alguma dificuldade em fazer caber todas as letras dentro do contorno, o nome que trago comigo. Todas me perguntam o que escrevi, mas é segredo. Tenho um enorme ataque de riso. Corro, atravesso sozinha de novo o ribeiro, para me livrar do frio e de mais perguntas. Rio-me até não poder mais, até às lágrimas e à dor de barriga. Disfarço. Digo que é um namorado búlgaro. Que tive. E é coisa que nunca tive. Minto com todos os dentes. Foi uma boa solução - a língua inusitada. Para que não restem dúvidas sobre a minha indiscrição deixada aos céus, até à próxima maré cheia, a minha prima fotografa, com a câmara digital, o meu desenho na areia. Assim, poderei sempre provar que não inventei esta história.

Thursday, February 23, 2006

Dança e não só

Já não sei quando nem porquê comecei a gostar daquela miúda – talvez pela maneira como ela se dá aos outros e cativa os alunos para o seu mundo, as artes, a dança em particular, o movimento dos corpos com sentido – seria esta a minha definição de dança, se ma pedissem.

A verdade é que M. começou a dançar antes mesmo de andar: fraldas enchumaçando o rabiosque gordo e já se abanava ao som da melodia que saía da caixinha de música pendurada na cama de grades. Mal se tinha de pé, mas tenho a certeza que já dançava. Por isso a sua relativamente fácil progressão na dança nem me surpreendeu. Mas, ainda assim… Sem a mão que nos dão no momento certo o mais provável é que resvalemos pela ribanceira, não que a consigamos subir airosamente. A mão certa foi a de Z. Um misto de paciência, persistência, rigor e muita brincadeira à mistura e M. começou a gostar a sério de dança, a não passar sem ela. Um vício? Talvez. E depois? Talvez um vício bendito, se é que os há assim catalogáveis. Que a faz crescer, rir e ser capaz de sonhar, com os pés bem assentes na terra.

Ontem Z. mostrou-me o texto que vai usar para o bailado deste ano (bailado não, talvez peça). Era sobre a solidão. De Chico Buarque. E eu tinha uma frase para a troca, do mais cru que se possa imaginar. Disse-a e Z. a custo conteve o choro, tão fortemente a sentiu. Lamentei não ter ficado calada. Tenho agora que compensá-la com palavras de esperança e de luz.
Desculpem-me, vou já, já, procurá-las!

Wednesday, February 22, 2006

Uma história para vocês

S. Torpes I

Desobedeço, pela centésima vez, às regras da sensatez. Regresso à praia onde fui feliz nos meus anos de adolescência, no princípio dela - S. Torpes. Não fui só feliz. Também correu aqui o tempo das primeiras paixões inconfessadas. A dor que deixam em nós não se esquece, apesar do tempo esbater os contornos da desilusão. Aquela mistura alvoroçada de sentimentos, vergonha com fogo intenso, deixa sempre uma leve cicatriz, em parte incerta da alma. Interrogo-me, como num filme de Woody Allen cujo título não recordo, se uma recordação é algo que temos ou algo que perdemos. Às vezes lamento-me por ter tanta capacidade de recordar o passado, noutras lamento não me conseguir lembrar de mais. O A.V., o A. N., por que raio deitei fora diários e cartas de pedido de namoro?
Chegamos. É preciso escolher a praia e não nos apetece outra senão a do antigo Mar de Prata. Ficamos já aqui? Estaciono. O vento leva-me as recordações para longe. Somos 4, todas raparigas. Uma, da minha idade, a minha prima. As outras são as nossas belíssimas filhas, de 9 e 10 anos. Agora o restaurante tem um nome qualquer, insípido, como provavelmente será a comida que serve: o bom petisco, o jaime dos frangos ou o manjar dos céus, tanto me faz, não me interessa. Está fechado. Descemos pelas escadas antigas, cobertas de pedrinhas redondas, coladas no cimento. As miúdas pulam pela praia fora, experimentam a água e nós corremos atrás delas, mais para vencer o frio do que por convicção desportiva. Ficamos muito atrás delas, a contemplá-las com a mesma paz regalada que provavelmente tinham nos olhos as nossas mães, quando, juntas, nos seguiam os passos. Há quantos? Talvez trinta e muitos anos atrás. Outra vez as recordações a pesarem-nos, para além do excesso de quilos e de anos. A minha prima fotografa as miúdas em contraluz, com a câmara digital. E eu lembro-me de uma certa fotografia, em formato 6X9, sacada com a velhinha Kodak do meu pai, a preto e branco. Uma de nós, certamente a minha prima, segura uma toalha. Fixei-a à película ao por do sol, contra o areal molhado, alisado pela maré vazia batendo em retirada (qual empregada de limpeza, recuando atrás da esfregona). Também havia, por certo do mesmo rolo, outra foto tirada lá de cima, das dunas, com uma Armeria (hoje sei que é este o nome da planta) desfocada, em primeiro plano. O sol, escondendo-se sobre o mar.
As mais pequenas chamam-nos agora para um jogo: escrever na areia os nomes dos rapazes de quem gostámos. Ganha quem for capaz de se lembrar de mais. Mas há uma regra - não se pode inventar. Em breve estragámos o trabalho do mar/mulher-a-dias numa área enorme da praia (escrevemos em letras colossais), até às rochas que vão ficando a descoberto à medida que o mar recua. Ganhou a minha prima (caramba, tinha que ser uma de nós, mais velhas). Eu bato-me para que os dois nomes que escrevi em búlgaro sejam contados. Elas aceitam que gostei daqueles dois nomes que são secretos e que não sabem ler, num alfabeto impenetrável. Mas mesmo assim, perco. Escrevi oito nomes. Que me desculpe alguém se a memória não reteve o seu nome… parece-me que estão todos, os que deixaram a tal pequena cicatriz na alma. O frio é de repente mais forte do que a nossa vontade de fazer praia, em dia de Primavera arredia. Vence-nos. Conseguimos arranjar força para correr outra vez, de volta ao carro, onde agradecemos o reconfortante efeito de estufa que nos devolve à temperatura do conforto. Partimos, à procura de gelados.

Thursday, February 16, 2006

Aprender botânica

No meu tempo de faculdade, num país estrangeiro onde tive o prazer de estudar, frequentei uma disciplina de Botânica Florestal.
Desengane-se quem pensar que o estudo da botânica é uma coisa enfadonha e pouco divertida. A história que vou contar prova o contrário!

Durante o primeiro ano frequentei um curso de Tecnologia da Madeira, com uma forte componente de Matemática e disciplinas tecnológicas. Assim que me apresentaram à Electrotecnia, no início do segundo ano, decidi muito rapidamente que me tinha enganado na escolha do curso e mudei para Engenharia Florestal, muito mais de acordo com a minha natureza. Só que os curricula dos dois cursos eram muito diferentes - foi preciso fazer algumas cadeiras do primeiro ano do novo curso durante o segundo ano. Uma delas precisamente Botânica. A comparência às aulas práticas era obrigatória. Tínhamos pois, eu e outra portuguesa, aulas com os alunos do primeiro ano de Silvicultura.
Nesse ano, por via de uma qualquer resolução estatal, apenas entraram rapazes no curso, portanto nós, eu e a Maria, caídas ali no meio de pára-quedas, únicas raparigas, ainda por cima estrangeiras, provocávamos um certo sururu…
O Assistente das Práticas, de nome Pavlov, era um homem sisudo mas educado, muito alto e dando sempre a impressão de ter engolido uma vassoura no minuto anterior. Costumava saudar-nos assim: ora lá vêm as colegas com os apelidos estritamente botânicos (a Maria, de apelido Flor, e eu, de apelido Palma). O sujeito sabia daquilo que até arrepiava. O costume era, em cada aula prática, mostrar-nos as plantas herbarizadas estudadas na aula anterior, tapando o respectivo nome. Havia que dizer o nome vulgar e os nomes em latim das ditas, sempre nome e sobrenome e, por vezes, classificador. A nós dispensava-nos do nome em búlgaro, já que o latino é usado em todo o mundo e é perfeitamente suficiente para sabermos de quem estamos a falar.
O facto de termos de aprender os nomes das plantinhas em latim para nós, dada a proximidade com o português, não era caso bicudo. Já para os nossos amigos búlgaros o caso era outro: os sons do latim eram qualquer coisa sem sentido que eles papagueavam por pura obrigação.
Como em todas as turmas, também naquela havia os tipos que estavam desejosos de passar no exame com o esforço mínimo indispensável e os que queriam brilhar, ainda mais à frente das meninas, ainda por cima estrangeiras. As meninas éramos nós, eu e a Maria.
Um belo dia estudávamos as plantinhas do limite superior da floresta, aquelas que vão (é o termo técnico) a altitudes próximas dos dois mil metros. A pobre violeta (em rigor nunca soube o seu nome vulgar em português) chamava-se Soldanella montana.
Um desses meninos muito aplicadinhos e que sabem sempre tudo estava presente na aula. O nosso amigo, num assomo de brilho e sabedoria, julgava ele, sai-se com um nome latino que tinha até a vantagem de rimar: Soldanela montanela. Foi o fim da picada. A Maria, que tinha um riso em escala diatónica, absolutamente incontrolável, riu durante meia hora e só parou quando as dores de barriga a obrigaram a isso. Eu, menos exuberante, fiz os possíveis por me conter. O Professor olhava para nós estupefacto (as meninas até costumavam comportar-se). Eu desculpava-me com a minha incompetência linguística para traduzir a graça… Era o que faltava!
Escusado será dizer que nunca aprendemos o nome do marrãozinho - ficou daí para a frente o "montanela". E cada vez que o avistávamos, ainda que à distância de um corredor inteiro, eu e a Maria tínhamos cada uma o seu ataque de riso, que o coitado nunca pôde entender.

Wednesday, February 08, 2006

A minha versão da história do sapo

- Queres ser o meu Príncipe Desencantado? perguntou ela.
- Sim, coaxou ele docemente.

E viveram felizes para sempre, no charco!

Friday, February 03, 2006

um texto antigo...

Vícios do olhar

Sim, senhor Dr. Juiz, ficou claro o que até aqui eu desconhecia por completo: não posso dirigir-lhe a palavra em público, assim, em qualquer lugar. Se por hipótese o tivesse feito numa retrete pública mista, que ainda não há, talvez por se temer que os homens saíssem das cabinas completando o gesto clássico, configurando repetidos crimes de atentado ao pudor, aquele mesmo gesto, aliás tão banal, de que se socorrem sempre, nos apertos, para urinar em qualquer local público, praticamente à vista de toda a gente, eu poderia certamente falar-lhe. Ou num qualquer outro local, mais recatado talvez … também pudesse. Mas ali, ficou claro, nas escadarias do tribunal, não posso dirigir-lhe a palavra. Aí, um simples Bom Dia pode ser considerado como tentativa de suborno, é um vício processual. Pois bem, é de vícios, vícios de apreciação, vícios do olhar sobre certas questões, que eu gostaria de falar.

Lê-se em voz alta um dos artigos do acordo de divórcio, que esteve para ser litigioso, por, aliás, haver razões de sobra por parte da mulher. Recai a estranheza sobre os dois únicos dias do mês em que o pai terá de ir, segundo o estipulado, buscar a filha à escola. Preocupa-se o leitor da proposta (por acaso é o juiz) com a probabilidade de o pai poder ter um furo no caminho e não poder ir… Não lhe suscita qualquer comentário o facto de, nos outros 28 dias do mês, poder a mãe, que também tem carro e o utiliza para ir trabalhar e para ir buscar a filha, ter um furo a caminho da creche. Nessas alturas, a quem vai telefonar a mãe? Ninguém pretende que fique explícito, porque basicamente, da mãe, que ficou sozinha com os filhos, nem sequer por opção sua, espera-se que vá cumprindo tudo quanto dela se exige: que trabalhe e faça carreira, que eduque os filhos, que trate dos velhos, e até artes mágicas para mudar pneus em tempo record e chegar, mesmo assim, antes da hora do fecho da creche. E ainda, se possível, que arranje outra vez homem, porque uma mulher sem homem, reza a tradição, não é completamente mulher… Basicamente da mulher se espera que se desenrasque, em qualquer circunstância. Não faz mal que o homem saltite de relação em relação, que deixe atrás de si um rasto de filhos e cuidados que, por este gesto simples de ir embora, deixaram de ser seus. A eles se atribui a liberdade de saltar fora se a nova mulher for melhor cozinheira, ou melhor enfermeira, em suma, a liberdade de ter todos os furos do mundo sem se preocupar com o horário da creche. A elas se pedirão contas se os meninos entrarem na droga ou se engravidarem a vizinha do lado.
Não será que devia o sistema judicial estar alerta com estas situações, fazer algo mais que submeter as mães que se divorciam, com motivos de sobra, talvez mais pela felicidade dos filhos do que pela sua própria, a retóricas padronizadas sobre a vontade e a felicidade dos filhos que elas criam, que elas mimam, que elas sustentam, pelos quais elas respondem, ainda e tão raramente neste país, com a esmola miserável de uma pensão de alimentos fixada sabe-se lá com que indulgência para os progenitores machos e com que subtileza punitiva para as mães, enquanto dos pais ausentes se espera apenas que mandem o cheque a tempo e horas e continuem alegremente ausentes?
Os pais ausentes confiam na infalível eficácia da chantagem psicológica para com as mães. Dão-se, pois, a certos luxos: pagam tarde e más horas a pensão, na certeza que os filhos não ficarão sem comida e não irão descalços à escola. Comentam a roupa pindérica que viram aos garotos num dia de semana em que tinham jogo de bola e recomendam-lhes que os sapatos que compraram no fim de semana sejam só para usar nas festas. Em contrapartida, as mulheres-mães-empregadas, que não souberam segurar o homem, o pai dos seus filhos, são olhadas pela sociedade no mínimo com desconfiança. Criticam-nas por gritarem com os filhos, chamam-lhes histéricas, descontroladas e exigem-lhes, para cúmulo do seu calvário de responsabilidades e correrias, que mantenham intactas a sua saúde mental e a dos filhos... Não será, talvez, pedir-lhes demais?