Wednesday, February 22, 2006

Uma história para vocês

S. Torpes I

Desobedeço, pela centésima vez, às regras da sensatez. Regresso à praia onde fui feliz nos meus anos de adolescência, no princípio dela - S. Torpes. Não fui só feliz. Também correu aqui o tempo das primeiras paixões inconfessadas. A dor que deixam em nós não se esquece, apesar do tempo esbater os contornos da desilusão. Aquela mistura alvoroçada de sentimentos, vergonha com fogo intenso, deixa sempre uma leve cicatriz, em parte incerta da alma. Interrogo-me, como num filme de Woody Allen cujo título não recordo, se uma recordação é algo que temos ou algo que perdemos. Às vezes lamento-me por ter tanta capacidade de recordar o passado, noutras lamento não me conseguir lembrar de mais. O A.V., o A. N., por que raio deitei fora diários e cartas de pedido de namoro?
Chegamos. É preciso escolher a praia e não nos apetece outra senão a do antigo Mar de Prata. Ficamos já aqui? Estaciono. O vento leva-me as recordações para longe. Somos 4, todas raparigas. Uma, da minha idade, a minha prima. As outras são as nossas belíssimas filhas, de 9 e 10 anos. Agora o restaurante tem um nome qualquer, insípido, como provavelmente será a comida que serve: o bom petisco, o jaime dos frangos ou o manjar dos céus, tanto me faz, não me interessa. Está fechado. Descemos pelas escadas antigas, cobertas de pedrinhas redondas, coladas no cimento. As miúdas pulam pela praia fora, experimentam a água e nós corremos atrás delas, mais para vencer o frio do que por convicção desportiva. Ficamos muito atrás delas, a contemplá-las com a mesma paz regalada que provavelmente tinham nos olhos as nossas mães, quando, juntas, nos seguiam os passos. Há quantos? Talvez trinta e muitos anos atrás. Outra vez as recordações a pesarem-nos, para além do excesso de quilos e de anos. A minha prima fotografa as miúdas em contraluz, com a câmara digital. E eu lembro-me de uma certa fotografia, em formato 6X9, sacada com a velhinha Kodak do meu pai, a preto e branco. Uma de nós, certamente a minha prima, segura uma toalha. Fixei-a à película ao por do sol, contra o areal molhado, alisado pela maré vazia batendo em retirada (qual empregada de limpeza, recuando atrás da esfregona). Também havia, por certo do mesmo rolo, outra foto tirada lá de cima, das dunas, com uma Armeria (hoje sei que é este o nome da planta) desfocada, em primeiro plano. O sol, escondendo-se sobre o mar.
As mais pequenas chamam-nos agora para um jogo: escrever na areia os nomes dos rapazes de quem gostámos. Ganha quem for capaz de se lembrar de mais. Mas há uma regra - não se pode inventar. Em breve estragámos o trabalho do mar/mulher-a-dias numa área enorme da praia (escrevemos em letras colossais), até às rochas que vão ficando a descoberto à medida que o mar recua. Ganhou a minha prima (caramba, tinha que ser uma de nós, mais velhas). Eu bato-me para que os dois nomes que escrevi em búlgaro sejam contados. Elas aceitam que gostei daqueles dois nomes que são secretos e que não sabem ler, num alfabeto impenetrável. Mas mesmo assim, perco. Escrevi oito nomes. Que me desculpe alguém se a memória não reteve o seu nome… parece-me que estão todos, os que deixaram a tal pequena cicatriz na alma. O frio é de repente mais forte do que a nossa vontade de fazer praia, em dia de Primavera arredia. Vence-nos. Conseguimos arranjar força para correr outra vez, de volta ao carro, onde agradecemos o reconfortante efeito de estufa que nos devolve à temperatura do conforto. Partimos, à procura de gelados.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home