Friday, February 03, 2006

um texto antigo...

Vícios do olhar

Sim, senhor Dr. Juiz, ficou claro o que até aqui eu desconhecia por completo: não posso dirigir-lhe a palavra em público, assim, em qualquer lugar. Se por hipótese o tivesse feito numa retrete pública mista, que ainda não há, talvez por se temer que os homens saíssem das cabinas completando o gesto clássico, configurando repetidos crimes de atentado ao pudor, aquele mesmo gesto, aliás tão banal, de que se socorrem sempre, nos apertos, para urinar em qualquer local público, praticamente à vista de toda a gente, eu poderia certamente falar-lhe. Ou num qualquer outro local, mais recatado talvez … também pudesse. Mas ali, ficou claro, nas escadarias do tribunal, não posso dirigir-lhe a palavra. Aí, um simples Bom Dia pode ser considerado como tentativa de suborno, é um vício processual. Pois bem, é de vícios, vícios de apreciação, vícios do olhar sobre certas questões, que eu gostaria de falar.

Lê-se em voz alta um dos artigos do acordo de divórcio, que esteve para ser litigioso, por, aliás, haver razões de sobra por parte da mulher. Recai a estranheza sobre os dois únicos dias do mês em que o pai terá de ir, segundo o estipulado, buscar a filha à escola. Preocupa-se o leitor da proposta (por acaso é o juiz) com a probabilidade de o pai poder ter um furo no caminho e não poder ir… Não lhe suscita qualquer comentário o facto de, nos outros 28 dias do mês, poder a mãe, que também tem carro e o utiliza para ir trabalhar e para ir buscar a filha, ter um furo a caminho da creche. Nessas alturas, a quem vai telefonar a mãe? Ninguém pretende que fique explícito, porque basicamente, da mãe, que ficou sozinha com os filhos, nem sequer por opção sua, espera-se que vá cumprindo tudo quanto dela se exige: que trabalhe e faça carreira, que eduque os filhos, que trate dos velhos, e até artes mágicas para mudar pneus em tempo record e chegar, mesmo assim, antes da hora do fecho da creche. E ainda, se possível, que arranje outra vez homem, porque uma mulher sem homem, reza a tradição, não é completamente mulher… Basicamente da mulher se espera que se desenrasque, em qualquer circunstância. Não faz mal que o homem saltite de relação em relação, que deixe atrás de si um rasto de filhos e cuidados que, por este gesto simples de ir embora, deixaram de ser seus. A eles se atribui a liberdade de saltar fora se a nova mulher for melhor cozinheira, ou melhor enfermeira, em suma, a liberdade de ter todos os furos do mundo sem se preocupar com o horário da creche. A elas se pedirão contas se os meninos entrarem na droga ou se engravidarem a vizinha do lado.
Não será que devia o sistema judicial estar alerta com estas situações, fazer algo mais que submeter as mães que se divorciam, com motivos de sobra, talvez mais pela felicidade dos filhos do que pela sua própria, a retóricas padronizadas sobre a vontade e a felicidade dos filhos que elas criam, que elas mimam, que elas sustentam, pelos quais elas respondem, ainda e tão raramente neste país, com a esmola miserável de uma pensão de alimentos fixada sabe-se lá com que indulgência para os progenitores machos e com que subtileza punitiva para as mães, enquanto dos pais ausentes se espera apenas que mandem o cheque a tempo e horas e continuem alegremente ausentes?
Os pais ausentes confiam na infalível eficácia da chantagem psicológica para com as mães. Dão-se, pois, a certos luxos: pagam tarde e más horas a pensão, na certeza que os filhos não ficarão sem comida e não irão descalços à escola. Comentam a roupa pindérica que viram aos garotos num dia de semana em que tinham jogo de bola e recomendam-lhes que os sapatos que compraram no fim de semana sejam só para usar nas festas. Em contrapartida, as mulheres-mães-empregadas, que não souberam segurar o homem, o pai dos seus filhos, são olhadas pela sociedade no mínimo com desconfiança. Criticam-nas por gritarem com os filhos, chamam-lhes histéricas, descontroladas e exigem-lhes, para cúmulo do seu calvário de responsabilidades e correrias, que mantenham intactas a sua saúde mental e a dos filhos... Não será, talvez, pedir-lhes demais?

2 Comments:

Blogger noiseformind said...

Minha cara, revi em muito do que escreveste a imagem acabada que depois de terapia falhada muitas mulheres espelham. O Homem em segunda vida de solteiro e a mulher em eternas núpcias com a criança...
E não há nada a fazer enquanto esta leva de juízes não passarem à refomra ; (((((((((

February 03, 2006  
Blogger Alice said...

Noise, muito me honras com a tua visita!
De facto o texto é mesmo antigo, de uma altura em que a minha vida não foi muito fácil e a raiva tinha mesmo de sair por qualquer lado. Mesmo a minha vida, com um ordenado razoavel, quanto mais a de mulheres com slários baixíssimos... Além do mais também fiz terapia (tive dinheiro e capacidade de entender que ela ajuda!). Só não estou tão optimista quanto tu relativamente à nova leva de juízes. Por curiosidade acrescento que o juiz em causa era "muito bom", no dizer do meu próprio advogado. Nem quero imaginar o que seria um mau!

February 06, 2006  

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