Wednesday, February 28, 2007

De novo, para que me serves, blog?

De repente fez-se luz. Esta crónica não pode fazer sentido! E realmente não faz… é o teu fantasma ténue que me comanda os gestos. Ele que me aparece na mesma noite duas vezes - na música que amavas (ainda amarás?) e na imagem de ficção do que já partiu e era como tu. Como sois difíceis, vós, os fantasmas. E carecas. Sois carecas, mais das vezes. Só tive um que o não era…
Desespera-me o barulho nocturno do fio de urina do vizinho de cima, o tic-tac do contador da água, o chinelar ronceiro da vizinha de cima, espelhos da miserável arquitectura deste prédio. As queixas da outra, todos os dias uma (faz-me lembrar o tipo da cadeira de rodas em Litle Britain), o barulho insuportável da rua – ambulâncias, motas, gritos de bêbados.
A tua mão escreve por mim – é assim, e é se me queres ler! Mas não te dês ao trabalho de querer entender tudo. Tudo, só se cá vieres ouvir os mesmos barulhos que tenho à disposição. Surrealista, esta treta, não é?
Mas agora já te escapei: escrevo o que quiser, quando quiser, se muito bem me apetecer!

Wednesday, February 21, 2007

partida

Ontem vivi uma angústia inexplicável, qualquer coisa que não me costuma chegar assim, sem razão aparente. Hoje soube da notícia da tua morte, ao início da manhã. Sei que não vens ao blog e nunca sequer te dei o nome dele.
Sei que agora te chegou a paz que não queremos nunca que chegue. Não sei porque acordei há dias a pensar em ti.
Não acredito em premonições ou antes, não quero acreditar…
Assusta-me esse outro mundo para onde partiste. E mais ainda pensar que nos pode mandar mensagens. E se… de facto, mandar? (O meu arrepio é egoísta.)
A tua lembrança vai ficar muito tempo. Em todos os festivais de teatro a que já não irás, em todos os dias em que me aparecer a tua irmã, passeando o Gualter…
Não sei o que direi ao teu filho, marido, irmã. Gostei de ti e tu de mim, isso sei. Mas por qualquer razão isso hoje não me basta!

Friday, February 09, 2007

para desanuviar, hoje falo de nascimentos!

Dá-se um jeito

Sempre que passo naquela rua, à porta dela, lembro-me do que nos aconteceu na véspera do nascimento da minha filha. Juntas pelo acaso na sala de partos do Garcia de Orta, estávamos ambas à espera que os nossos bebés se resolvessem finalmente a sair da água quentinha das nossas barrigas. Eu, com 36 anos, ela com 42. Para mim 2º parto, para ela 3º ou 4º, não me lembro. Em todo o caso já considero estoicismo ir além do segundo filho e Sadie estava prestes a passar essa barreira. Mas dilatação nada, nem do lado dela, nem do meu…
Estávamos naquilo havia horas, ligadas a toda a espécie de aparelhagem que indicava o estado das nossas atrasadas crias, que não se queriam deixar ver e no entanto se encontravam clinicamente óptimas, apenas caprichosamente preguiçosas. As enfermeiras entravam, olhavam os monitores do muito equipamento que ocupávamos, encolhiam os ombros e iam-se embora com a mesma pressa com que tinham entrado.
De repente, Sadie começa a chamar por ajuda. A enfermeira, que de facto tinha feito o toque havia menos de meia hora, não ligou nenhuma. Mas lembrou-se que ainda não tinha procedido à leitura de um texto sobre a epidural, formalidade imprescindível, já que era preciso dar conhecimento às parturientes sobre este tipo de analgesia (que já se aplicava nessa altura no Hospital, quando solicitada). Passa por Sadie e estende-lhe o papel onde constavam os ditos esclarecimentos. Para meu espanto, Sadie revela que não sabe ler! (ou então, pensei mais tarde, foi o que disse para se livrar daquele estorvo).
Então, com o mesmo papel na mão, a enfermeira dirige-se a mim e pergunta: - E a senhora, sabe ler?
- Dá-se um jeito! respondi, com o restinho que sobrava do meu sentido de humor, já muito abalado pela longa espera.
- Então, faça-me um favor, leia-me isto alto para aquela senhora e para si! Foi o que fiz, ou pelo menos, tentei.
Com Sadie aos berros (desculpem-me os defensores das várias teorias do parto sem dor, mas a verdade é que aquilo a dada altura dói e pronto) eu continuava a ler as vantagens e desvantagens da epidural, das quais, confesso, não me lembro népia, apenas que no meu caso concreto a dita foi uma benção dos céus…
O corrupio de médicos e enfermeiras adensou-se de repente em torno de Sadie, finalmente levada a sério. A dilatação estava completa!
O bebé nasceu ali mesmo, nas boxes colectivas, por detrás de uma cortina corrida à pressa. Nem houve tempo para a mudança para uma cabina individual! Para além dos médicos e da mãe, fui eu quem primeiro o ouviu gritar. Era um rapaz!
A minha filha só nasceu muitas horas depois, de cesariana, e também gritou bem alto, nessa hora e nas noites de muitos e muitos dos dias seguintes…

Tuesday, February 06, 2007

Ainda o aborto

Caríssimos
Tenho já pouca paciência para ouvir mais argumentos sobre prazos e datas e diatribes astuciosas para nos fazer crer que não também é sim…, mas no entanto…Por isso comecei a fixar-me numa outra vertente da questão que alguns têm medo de abordar: esta é mesmo uma questão de classe ou de classes.
Falar, do alto das suas posses, sobre o que devem ser e escolher os outros, é tremendamente fácil (assustadoramente autista, também). Falar de barriga cheia (já que as classes dominantes têm o problema de uma gravidez indesejada duplamente resolvido – ou levam por diante a gravidez ou fazem um aborto em boas condições, embora clandestino) é simples. Estar do outro lado, sem nenhuma daquelas opções, é que é difícil. E, como disse alguém e muito bem, no blog do Murcon, a caridadedezinha não vai chegar para todos.
Também estranho que os defensores de que deve ser o Estado a garantir tudo e a dar condições para maior natalidade são os mesmos que querem ver reduzido o que chamam de peso do Estado (leia-se despedir funcionários públicos, acabar com serviços, etc, etc).
Há qualquer coisa que não bate certo!

Friday, February 02, 2007

Sobre o aborto

Os excertos do texto que vos trago pertencem a um documento de 1940. O que mais me choca é, nalguns aspectos, a sua gritante actualidade. Não tive muito tempo para organizar ou arrumar os bocadinhos que resolvi trazer-vos. A minha escolha foi necessariamente sucinta, já que não tenho scaner. De qualquer modo aqui vai, com a indicação da pág da obra citada:

“Como se justifica então que a sociedade, que, pela sua organização, provoca o aborto, considere o aborto como um crime e critique ferozmente aquelas que o praticam? Como se justifica que a sociedade, que coage a mulher trabalhadora ao aborto, castigue as mulheres que se fazem abortar?
A razão estrutural é a impossibilidade que a mesma sociedade tem de banir as causas do aborto, a miséria, o desemprego, a crise de habitação, a desprotecção às crianças, etc., que são corolários da sua própria existência. Incapaz de banir as causas, a sociedade utiliza a repressão (pg 81).
Note-se o contraste entre a morte de um quinto das crianças nascidas , devido à falta de condições, considerada uma “morte natural” e a interrupção voluntária da concepção, considerada como um “crime”….
… A lei apresenta-se como lutando contra “o aborto em geral”, mas, na realidade, ela atinge somente as mulheres trabalhadoras. As mulheres ricas fogem sempre à repressão (pg 83).
Ao constatarem a ineficácia e o efeito contrário das medidas repressivas, os estadistas e escritores das classes dominantes não se apercebem de que elas são ineficazes, não porque sejam pouco violentas, mas porque em nada alteram as verdadeiras causas do aborto. Persistindo as causas a repressão não consegue atenuar o mal e o número de abortos não cessa de aumentar (pg 84).
…E não só não evitam (o aborto) como lançando-o para a clandestinidade, tornam incomparavelmente mais perigosas as suas consequências….desta forma “a morte, as doenças, a esterilidade, a incapacidade de trabalho, todas estas consequências da clandestinidade, são o produto da lei sobre o aborto” (citando aqui César Ducharme, “L’avortement”, Paris,1933)
Se todo o aborto é um mal, a clandestinização do aborto é uma catástrofe. (pg85)

Quais são os resultados da ilegalização e da repressão?
Em primeiro lugar , e considerando apenas o aspecto jurídico (a lei e a sua aplicação), sendo sabido, segundo numerosas estimativas, que centenas de milhar de mulheres praticam o aborto e que, portanto, à base da lei, praticam um crime severamente punido, as estatísticas mostram que apenas um número reduzidíssimo de mulheres é julgado e condenado.
Dão-se exemplos: os dados disponíveis de 1936 e 1937 indicam apenas 11 e 7 condenações, respectivamente (pg 100).
As estatísticas encerram ainda outros esclarecedores aspectos. Não é um acaso que, das 8 mulheres condenadas em 1925 pela prática do aborto, 7 fossem analfabetas e, de 16 condenadas em 1935, 13 fossem analfabetas.
Significativo é também que a maioria das mulheres condenadas sejam solteiras: 6 das 8 condenadas em 1925 e 12 das 16 condenadas em 1935 (pg 101).
Em segundo lugar, a ilegalização, com o secretismo e a fuga à repressão a que obriga, conduz a uma cada vez maior deterioração das condições em que é praticado o aborto clandestino (pg 101).

A luta contra o aborto tem necessariamente de incluir uma política económica e social que garanta a melhoria radical das condições de vida dos trabalhadores ... a remoção do obscurantismo e dos preconceitos, uma nova moral sexual, o reconhecimento dos direitos das mulheres (pg 102).

Visto aceitar-se que o aborto é um mal, revelada a inoperância das leis repressivas, pergunta-se: qual é então a verdadeira luta contra o aborto, qual a forma de limitar a razia que ele faz ou de o banir para sempre da sociedade? (pg103)

Na impossibilidade, desde hoje, de se liquidarem as causas do aborto (ou seja: na impossibilidade de, nas presentes condições sociais, fazer desaparecer o aborto), é necessário limitar as suas consequências nocivas. Como? Provisoriamente, enquanto persistirem as presentes condições sociais, enquanto o aborto for uma necessidade imperiosa para um grande número de mulheres, para reduzir os estragos que ele ocasiona, é necessário legalizar o aborto.
A legalização do aborto traz consigo dois enormes benefícios. Em primeiro lugar, realizado legalmente por médicos competentes, em clínicas ou hospitais apropriados, os perigos da intervenção abortiva são enormemente reduzidos. ...Em segundo lugar, a legalização do aborto permite distinguir com critério científico quando se deve ou não praticar o aborto, permite determinar os perigos que existem em cada caso concreto e as medidas especiais a tomar em face desses perigos.... a observação e a intervenção de um clínico experimentado contrastam flagrantemente com as manobras abortivas feitas por “curiosas”, manobras que conduzem à doença, à esterilidade e à morte.
O aborto legal é, assim, indiscutivelmente menos perigoso do que o aborto clandestino. Até encarniçados adversários da legalização são forçados a reconhecê-lo. (Pg 104-105)”

E agora a fonte:
O aborto - causas e soluções
Tese apresentada em 1940 para exame no 5º ano jurídico da Faculdade de Direito de Lisboa por Álvaro Cunhal (defendida quando se encontrava na prisão)
Edit. Campo das Letras, 1997

Confesso que quando comprei o livrinho, fiquei surpreendida com o facto de Álvaro Cunhal ter escolhido este tema como tese de licenciatura. E também com a coragem que isso representou nessa época. Hoje o que me surpreende é a actualidade de grande parte do seu conteúdo, ao fim de tantos anos!
Como mudam devagar as coisas que queremos ver mudadas!