Friday, February 02, 2007

Sobre o aborto

Os excertos do texto que vos trago pertencem a um documento de 1940. O que mais me choca é, nalguns aspectos, a sua gritante actualidade. Não tive muito tempo para organizar ou arrumar os bocadinhos que resolvi trazer-vos. A minha escolha foi necessariamente sucinta, já que não tenho scaner. De qualquer modo aqui vai, com a indicação da pág da obra citada:

“Como se justifica então que a sociedade, que, pela sua organização, provoca o aborto, considere o aborto como um crime e critique ferozmente aquelas que o praticam? Como se justifica que a sociedade, que coage a mulher trabalhadora ao aborto, castigue as mulheres que se fazem abortar?
A razão estrutural é a impossibilidade que a mesma sociedade tem de banir as causas do aborto, a miséria, o desemprego, a crise de habitação, a desprotecção às crianças, etc., que são corolários da sua própria existência. Incapaz de banir as causas, a sociedade utiliza a repressão (pg 81).
Note-se o contraste entre a morte de um quinto das crianças nascidas , devido à falta de condições, considerada uma “morte natural” e a interrupção voluntária da concepção, considerada como um “crime”….
… A lei apresenta-se como lutando contra “o aborto em geral”, mas, na realidade, ela atinge somente as mulheres trabalhadoras. As mulheres ricas fogem sempre à repressão (pg 83).
Ao constatarem a ineficácia e o efeito contrário das medidas repressivas, os estadistas e escritores das classes dominantes não se apercebem de que elas são ineficazes, não porque sejam pouco violentas, mas porque em nada alteram as verdadeiras causas do aborto. Persistindo as causas a repressão não consegue atenuar o mal e o número de abortos não cessa de aumentar (pg 84).
…E não só não evitam (o aborto) como lançando-o para a clandestinidade, tornam incomparavelmente mais perigosas as suas consequências….desta forma “a morte, as doenças, a esterilidade, a incapacidade de trabalho, todas estas consequências da clandestinidade, são o produto da lei sobre o aborto” (citando aqui César Ducharme, “L’avortement”, Paris,1933)
Se todo o aborto é um mal, a clandestinização do aborto é uma catástrofe. (pg85)

Quais são os resultados da ilegalização e da repressão?
Em primeiro lugar , e considerando apenas o aspecto jurídico (a lei e a sua aplicação), sendo sabido, segundo numerosas estimativas, que centenas de milhar de mulheres praticam o aborto e que, portanto, à base da lei, praticam um crime severamente punido, as estatísticas mostram que apenas um número reduzidíssimo de mulheres é julgado e condenado.
Dão-se exemplos: os dados disponíveis de 1936 e 1937 indicam apenas 11 e 7 condenações, respectivamente (pg 100).
As estatísticas encerram ainda outros esclarecedores aspectos. Não é um acaso que, das 8 mulheres condenadas em 1925 pela prática do aborto, 7 fossem analfabetas e, de 16 condenadas em 1935, 13 fossem analfabetas.
Significativo é também que a maioria das mulheres condenadas sejam solteiras: 6 das 8 condenadas em 1925 e 12 das 16 condenadas em 1935 (pg 101).
Em segundo lugar, a ilegalização, com o secretismo e a fuga à repressão a que obriga, conduz a uma cada vez maior deterioração das condições em que é praticado o aborto clandestino (pg 101).

A luta contra o aborto tem necessariamente de incluir uma política económica e social que garanta a melhoria radical das condições de vida dos trabalhadores ... a remoção do obscurantismo e dos preconceitos, uma nova moral sexual, o reconhecimento dos direitos das mulheres (pg 102).

Visto aceitar-se que o aborto é um mal, revelada a inoperância das leis repressivas, pergunta-se: qual é então a verdadeira luta contra o aborto, qual a forma de limitar a razia que ele faz ou de o banir para sempre da sociedade? (pg103)

Na impossibilidade, desde hoje, de se liquidarem as causas do aborto (ou seja: na impossibilidade de, nas presentes condições sociais, fazer desaparecer o aborto), é necessário limitar as suas consequências nocivas. Como? Provisoriamente, enquanto persistirem as presentes condições sociais, enquanto o aborto for uma necessidade imperiosa para um grande número de mulheres, para reduzir os estragos que ele ocasiona, é necessário legalizar o aborto.
A legalização do aborto traz consigo dois enormes benefícios. Em primeiro lugar, realizado legalmente por médicos competentes, em clínicas ou hospitais apropriados, os perigos da intervenção abortiva são enormemente reduzidos. ...Em segundo lugar, a legalização do aborto permite distinguir com critério científico quando se deve ou não praticar o aborto, permite determinar os perigos que existem em cada caso concreto e as medidas especiais a tomar em face desses perigos.... a observação e a intervenção de um clínico experimentado contrastam flagrantemente com as manobras abortivas feitas por “curiosas”, manobras que conduzem à doença, à esterilidade e à morte.
O aborto legal é, assim, indiscutivelmente menos perigoso do que o aborto clandestino. Até encarniçados adversários da legalização são forçados a reconhecê-lo. (Pg 104-105)”

E agora a fonte:
O aborto - causas e soluções
Tese apresentada em 1940 para exame no 5º ano jurídico da Faculdade de Direito de Lisboa por Álvaro Cunhal (defendida quando se encontrava na prisão)
Edit. Campo das Letras, 1997

Confesso que quando comprei o livrinho, fiquei surpreendida com o facto de Álvaro Cunhal ter escolhido este tema como tese de licenciatura. E também com a coragem que isso representou nessa época. Hoje o que me surpreende é a actualidade de grande parte do seu conteúdo, ao fim de tantos anos!
Como mudam devagar as coisas que queremos ver mudadas!

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