Friday, February 24, 2006

S. Torpes II

Vencidas as ervas do quintal, partimos para a praia com as miúdas, eu e a minha prima.
Sopra o vento, um clássico nesta costa alentejana, durante a tarde (dizia-o o "chefe" Canhão, já falecido, único colega que conheci que sabia de meteorologia). Paramos no restaurante Mar de Prata, onde dantes acabava a praia ao nosso alcance. O restaurante está fechado e há muito que o nome não é aquele. Agora, é aqui que em rigor começa a praia, porque, até ele, a belíssima praia de outrora foi destruída, "limpa" de suas rochas e invadida por canos e blocos artificiais. É suja. O mar é mais calmo do que dantes, junto aos pontões artificiais. A água é mais quente. À beira do restaurante há uma escada de acesso à praia. Parece-me que é a mesma que já havia por altura dos meus 14 ou 13 anos. Há também uma ribeira que vem desaguar na praia. A água que corre nela parece mais limpa do que outrora.
As miúdas correm pela praia, descalças. Molham os pés e gritam, do frio. Atravessam o riacho na sua foz, uma corrente tão fraca que isso não é, nem um pouco, perigoso. Espalham-se pelo areal aves que não costumamos ver. Uma toutinegra, diz a minha prima. Uma bekassina, penso eu, noutra língua, a minha língua inusitada. Em todo o caso uma limícola qualquer, a ave, é o que tem lógica. Tem uma poupinha, move-se ligeira, junto aos calhaus redondos tão típicos de S. Torpes (assim me disse há tempos uma geóloga), que se estendem em abundância a montante da foz do riacho, junto a uma ponte, para o lado das dunas. Eu e a minha prima descemos à praia e abrigamo-nos junto às rochas. Não sei do que falamos. Dói-me a cabeça e o sol não queima, mas fere o olhar, isola-me do mundo em vez de iluminar-me. Cega-me. De olhos semicerrados, protejo-me da areia trazida a reboque pelo vento e do excesso de luz. Embrulho-me na única toalha de banho que trouxemos. Faz frio. Excepto, é claro, para as miúdas, que, do outro lado do riacho, saltitam na planura de areia molhada que a maré vazia lhes oferece. Do lado de cá, alheias, o pensamento a vaguear entre passado e futuro, não percebemos exactamente o que fazem. Mas é óbvio que se divertem. Não desistem, apesar do vento e do frio. Quando se dão por satisfeitas, atravessam na nossa direcção, chamam-nos para vermos "desenhos lindos". Contrariadas, fazemo-nos ao caminho. Atravessamos o riacho quase sob a ponte, pelas pedras, onde se passa a seco. Os desenhos são corações e faixas em forma de cartazes, com nomes inscritos, os nomes dos rapazes de quem as nossas meninas gostam: amo-te Miguel, amo-te Pedro. A minha prima não se contém: desenha um enorme coração e dentro: amo-te Zé. Não posso ficar para trás. Risco no chão um coração muito assimétrico e uso a minha língua inusitada. Escrevo dentro dele, em desalinho e tendo alguma dificuldade em fazer caber todas as letras dentro do contorno, o nome que trago comigo. Todas me perguntam o que escrevi, mas é segredo. Tenho um enorme ataque de riso. Corro, atravesso sozinha de novo o ribeiro, para me livrar do frio e de mais perguntas. Rio-me até não poder mais, até às lágrimas e à dor de barriga. Disfarço. Digo que é um namorado búlgaro. Que tive. E é coisa que nunca tive. Minto com todos os dentes. Foi uma boa solução - a língua inusitada. Para que não restem dúvidas sobre a minha indiscrição deixada aos céus, até à próxima maré cheia, a minha prima fotografa, com a câmara digital, o meu desenho na areia. Assim, poderei sempre provar que não inventei esta história.

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