Monday, June 12, 2006

Não me lembro de nada

Por vezes a memória prega-nos partidas. No fundo talvez a sua função maior seja essa, impedir-nos a todo o custo e a todo o passo, de reconstituir a realidade. Ficamos presos a vagos fios de pensamento, tão falsos que nem conseguimos imaginar a dimensão do engano.

Talvez por isso eu não consiga dizer com precisão durante quanto tempo me arrastei, sem nenhuma relutância, no meio de almoços que verdadeiramente não me davam prazer, apenas me eliminavam a penosa tarefa da escolha - da companhia, do restaurante, por vezes até do prato.

Sei vagamente o caminhos dos restaurantes por onde andámos, vagamente os teus pratos preferidos : gostavas de favas, ou seria de bacalhau?
Vagamente sei do que falávamos, quanto gastávamos, em média, claro. Tinha de ser barato, sim, mas no princípio de cada mês podíamos dar-nos ao luxo de uma pequena extravagância, vá lá, um peixinho grelhado mais caro, numa praia cosmopolita. Nos outros dias prevalecia o formato da tasca mais ou menos limpa, atendimento simpático, vinho que não fosse zurrapa, enfim, uma exigência mínima pautada por um certo grau de asseio e simpatia, abaixo do qual não descíamos. E outro detalhe, esse era exigência minha: não íamos a sítios onde fosse preciso verificar a conta. Se em dois dias seguidos o proprietário se enganava em seu favor, ao terceiro dia já lá não nos apanhava. Isso era sagrado, uma questão de princípio e de postura – a hora de comer não podia ser fonte de arrelias escusadas.

Nunca contabilizei o tempo que perdíamos em esperas – pela mesa, pela lista, pela comida e pela conta. Também não faço ideia que quantidade de paciência me foi necessária para aturar as tuas divagações circulares, as tuas obsessões, o teu discurso incoerente, que mudava de dia para dia. Nem saberia em que unidade medir a paciência. Mas sei, vagamente, que tinhas piada, pelo menos que dizias piadas e que não costumavas repeti-las. É curioso, não me lembro se costumavas contar anedotas... histórias, sim, contavas.
E, na altura, isso chegava-me, ou, em rigor, eu não procurava mais do que exactamente o que tu me davas, e que era, salvo erro, rigorosamente quase nada.
Sei vagamente ainda a cor dos teus olhos: azuis, verdes ou cinzentos? A tua silhueta recorta-se-me de quando em vez, fugidia, nos corredores vagos da memória.
Sei que tudo isto (à falta de melhor designação Isto terá de servir) durou um inverno inteiro, e mais um verão, talvez inteiro. Mas saber de nós, de mim, de ti, do que fazíamos ali, na verdade não sei nada.

Apenas sei que, de tudo o que vivemos nesses almoços vagamente tristes, é como se verdadeiramente eu nunca tivesse sabido nada, e um alheamento doce me tolhesse, agora, o entendimento desses dias.
Não sei mais o que aconteceu connosco.
Não me lembro de nada.

2 Comments:

Blogger Elsa Gonçalves said...

se se perde a memória é porque não foi importante, ou porque quisémos perdê-la.
O Freud explica isso bem...eu não. Apenas entendo. E cheira a hortelã na minha janela.

June 19, 2006  
Blogger Alice said...

trata-se talvez de esquecer, mas lembrando tudo...

June 21, 2006  

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